Friday, August 04, 2006

Sobre a incrível incapacidade humana de entender o significado de palavras que não são nativas da realidade de quem as usa.

Ontem, numa conversa, falei que o ataque das últimas 24horas do Hezbolá sobre Israel se resumiu a 200 mísseis. Falei isso em tom zombateiro, como uma forma de ilustrar o que eu penso sobre a guerra. Sobre a guerra ser mais para ver do que para sentir. Na lógica de que a TV mostra os piores fatos, os grandes bombardeios, as cenas mais cinematográficas, as fatias mais impressionantes. E quem está lá no pais em guerra não vive aquilo que a gente enxerga na TV.

Bom, essa noite foi diferente, pelo menos pra mim.

Certo momento eu tava em uma casa, um lugar muito bonito, perfeitamente decorado pra sentir como se tivesse em uma ilha, talvez vizinha à Ilha da Fantasia. Eu a a Martina estávamos na varanda e espiávamos para dentro da casa através dos janelões de vidro. Dentro parecia quente, muito aconchegante e estávamos prestes a entrar. Então vimos uma flecha cruzar o céu, longe, bem distante. então adivinhei que era um míssel. E depois veio outro e mais dois, riscando o céu em caminhos quase idénticos. Então eu tava numa lancha offshore curtindo a vida no paraíso. Por uma fresta vejo o painel de controle do barco, uma espécie de radar meteorológico e nele está um ponto em movimento na direção do centro radial. Me vejo ameaçado. Então corro para avisar e ordenar a fuga, corro para buscar a Martina, corro sem sair do lugar. Então enxergo o míssel com fuselagem branca e detalhes em vermelho em rasante sobre o mar azul escuro. Sei que ela tá rápido mas enxergo devagar, apesar do ponto de referência das montanhas. Percebo que ele está mesmo devagar e que eu estou também, que todo o mundo entrou em câmera lenta, numa velocidade que permitiria ao meu cérebro processar o que estava acontecendo e encontrar um plano de fuga. Então eu tava no proa sem chegar a conclusão alguma, sem entender por que um míssel está me perseguindo. Entre esse pensamento e outro foi como duas horas e senti minhas pernas moverem-se na velocidade das tartarugas fora dágua e abracei a Martina e falei pra ela que se vamos morrer vamos ver o lado bom. E vi a minha vida não como um filme, mas como uma sentença que dizia algo como "Parabéns pelos seus dias, me orgulho de você. Você foi um aprendiz que pode passar de fase" acompanhada de imagens que não se solidificaram sobre o convés. O míssel tava vindo e eu tava no controle da lancha. Manobrei uma curva fechada. A lancha tinha a desenvoltura de um caça e ao meu lado tava a instrutora de astrofísica aplicada a aviação, Charlotte Blackwood. Então eu tava de volta a ilha, no patio da casa, buscando lenha quando explodiu um cogumelo no horizonte. O alívio da última fuga sumiu e senti medo da sorte. Corri acompanhado de alguém para entrada da casa, que estava fechada. Pulei muros e encontrei outras pessoas correndo. Era noite e eu queria paz, queria dormir tranquilo. e outro míssel passou voando e caiu perto. E outro, e outro, eram dezenas e eu estava jogando batalha naval e correndo. Pulei uma cerca e senti areia no pé descalso, acendi a lanterna, a Martina gritou que não! E enxergo na beira da praia um grupo de fugitivos cubanos preparando uma balsa e um deles corre na minha direção. É um cachorro que pula e tenta me lamber e eu esquivo e ele some. E corro. E uma dúzia também corre. e o míssel tá chegando... de novo e de novo.

E o sonho continua tirando a minha paz, consumindo o tempo que tenho para descansar, estragando o prazer de não sentir nada. E acordo com a nítida impressão de que tudo foi um sussurro de alguém preocupado com a minha incapacidade de entender o que significa terrorismo.

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